Como Ajudar Animais Mesmo Comendo Carne

Alysson Augusto
8 min readMar 6, 2021

Essa simples medida pode impactar empresas de todo o Brasil as fazendo levar o sofrimento dos animais a sério. E você não precisa deixar de comer carne para reconhecer isso.

Assista ao vídeo e entenda.

Se preferir, leia a transcrição do vídeo abaixo.

Responsabilidade Social e Bem-estar animal: pequenas medidas, muito menos sofrimento

Se você se preocupa em ajudar os animais ao mesmo tempo em que paga para que matem eles para você comer, fique tranquilo porque hoje eu não vou tentar convencer você a deixar de consumir carne animal;

pelo contrário, se você é cliente da indústria de proteína animal, é principalmente com você que quero falar. Sim, você vai continuar comendo as mesmas coisas — mas pode ajudar a fazer com que elas sejam produzidas com menos sofrimento.

Certamente você já está acostumado com a forma como as pessoas tratam animais domésticos em geral. Elas procuram dar algum espaço e lazer para eles, para que não fiquem neuróticos; as pessoas evitam levá-los em viagens, ou os sedam para o transporte; eles são anestesiados antes de cirurgias (como a castração); e, quando eles sofrem demais por alguma doença ou trauma, recebem eutanásia. Acima de tudo, quando uma pessoa causa sofrimento desnecessário aos nossos animais de companhia, essa pessoa é punida.

Há poucos meses, foi publicada a “Lei Sansão” (Lei 14.064/20) — criando uma forma qualificada do crime de maus-tratos contra animais, cuja punição pode chegar até 5 anos de reclusão, no caso de cães e gatos. Mas note que a forma “leve” de maus-tratos não tem qualquer restrição, portanto se aplica a qualquer animal: hamster, canário, golfinho, galinha, e por aí vai.

“E agora, Alysson, você vai dizer que nós não fazemos nada disso com os animais de criação, certo? Vai dizer que nós os maltratamos, ou que não nos preocupamos com os animais selvagens, né?”

Na verdade, não é bem assim.

O fato é que existe muita gente preocupada com bem-estar animal dentro da própria indústria — ao menos eu imagino que ninguém vá cursar veterinária ou agronomia porque gosta de ver bicho sofrer, não é mesmo?

Se você comparar a maneira como criávamos e abatíamos animais até pouco tempo atrás (e algumas pessoas ainda fazem isso, de forma artesanal), vai ver que as coisas melhoraram muito; há toda uma seção da página do Ministério da Agricultura sobre o bem-estar de animais de criação. Isso é fruto da preocupação de profissionais da indústria, de algumas campanhas de conscientização de consumidores, de decisões de algumas empresas (seja porque estejam preocupadas com sua imagem ou com a qualidade da carne, que piora quando o animal abatido está estressado) e — quando tudo o mais falha — isso também é fruto de disputas judiciais, como no caso da exportação de animais vivos para abate.

O problema é que nem todas as empresas seguem os mesmos princípios. Por exemplo, o percentual de galinhas criadas fora de gaiola nos EUA subiu de 6% para 28% nos últimos 5 anos; esse modo de produção também tem se expandido no Brasil, mas ainda há espaço — é só olhar no supermercado: os ovos de galinhas supostamente “livres” têm isso escrito na embalagem.

É claro, ninguém gosta de pensar sobre a quantidade de sofrimento gerado para que um produto chegue até nós; isso nos obrigaria a reconhecer o peso moral de comer animais. Afinal, eles vão morrer de qualquer jeito, não é mesmo?

E esse é justamente o ponto: nós temos o poder de vida e morte sobre animais de criação; sobre eles nós atuamos como deuses, somos seus criadores e eles são nossas criaturas. Então o mínimo que podemos fazer é sermos deuses generosos e compassivos, ao invés de divindades cruéis.

Note que eu não disse nada, e nem vou dizer, sobre a importância dos direitos dos animais ou sobre os fundamentos morais que nos levam ao dever de parar de explorá-los. O fato é que você não precisa entrar numa discussão jurídica ou filosófica complicada só pra reconhecer que causar ou sentir dor é algo ruim, e que, já que estamos causando, que ao menos façamos isso diminuindo o sofrimento causado.

Embora seja o ideal, o que eu sugiro hoje não é que você simplesmente pare de comer animais, ou que as empresas sejam legalmente obrigadas a adotar as melhores práticas possíveis, como por exemplo substituir produtos animais por vegetais; antes disso, o que eu quero é algo muito mais simples: que se reconheça que empresas que adotam medidas para mitigar o sofrimento de animais fazem algo moralmente bom — ou, pelo menos, algo moralmente melhor do que não fazer nada, ou ainda muito melhor do que adotar práticas brutais, economizando em alguns custos só pra que você possa comer um ovo ou um bife um pouquinho mais barato.

Ao fazer isso, essas empresas estão cumprindo melhor com suas responsabilidades sociais; elas estão agindo de maneira mais ética em seus negócios, reduzindo um pouco a quantidade geral de sofrimento no mundo.

Nos últimos anos, graças a uma coordenação global entre profissionais das finanças, pesquisadores e organismos internacionais a respeito das mudanças climáticas, a preocupação com responsabilidade social tem ganhado escala — e isso só acelerou com a pandemia de 2020. Por exemplo, nas cartas aos investidores, Larry Fink, Presidente da BlackRock, um dos maiores fundos de investimento do mundo, quase que só fala disso; e foi a pressão internacional de investidores que levou o governo a adotar medidas contra incêndios na Amazônia; e foi a repercussão negativa do espancamento até a morte de um cliente negro no Carrefour que levou a rede de supermercados a fazer doações e a mudar o treinamento de seus seguranças.

Mas, como vocês veem, o termo “responsabilidade social”, ou “socioambiental”, ou mesmo “social, ambiental e climática”, é um rótulo guarda-chuva que se aplica a coisas totalmente diferentes. Uma das coisas a que se aplica é a redução do sofrimento animal; só que, com tantas outras coisas importantes, é fácil esquecer disso. Por exemplo, não há nenhuma menção a bem-estar animal nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas — eles só tratam da preservação da fauna do ponto de vista da conservação do meio ambiente.

Felizmente, tudo isso pode ser diferente.

Agora mesmo, está aberta a Audiência Pública nº 9/2020 da CVM, no link que eu deixo aí na descrição; ela trata da atualização de Instrução Normativa sobre documentos que precisam ser divulgados pelas empresas que emitem valores mobiliários (como ações e debêntures) — tratando inclusive de questões sobre responsabilidade socioambiental. Se você olhar a proposta da norma, vai notar que não há qualquer referência a bem-estar, crueldade ou maus-tratos em relação a animais; é como se empresas que têm essa preocupação não estivessem sendo socialmente responsáveis.

O fato é que isso poderia ser resolvido simplesmente acrescentando a frase “inclusive a prevenção do sofrimento e mortes dos animais” lá no texto da Instrução Normativa quando fala de questões ambientais; afinal, é assim que a nossa legislação faz: a proibição de crueldade contra animais na Constituição está junto com a preservação do meio ambiente, e o crime de maus-tratos contra animais é definido na Lei de Crimes Ambientais.

Em outras palavras, seria bom se nosso direito reconhecesse formalmente o bem-estar animal como uma preocupação especial, bem distinta da preservação do meio ambiente; na verdade, isso já ocorreu no passado com o Decreto nº 24.645/1934, que permaneceu formalmente vigente até 1991. Dizem, inclusive, que os advogados usavam essa lei para reclamar de maus-tratos contra presos políticos do Estado Novo. Enfim, o fato é que até esse dia chegar, a melhor alternativa é deixar explícito que questões ambientais devem incluir a proteção de animais em geral contra a crueldade.

E seja você vegano ou um comedor de carne, leite e ovos, o fato é que você pode contribuir facilmente com um mundo onde haja menos sofrimento ao simplesmente preferir empresas que deliberadamente adotam práticas visando o bem-estar animal.

Agora, se você acredita que não é preciso ter uma norma citando que melhorar o bem estar de animais é um objetivo válido, saiba que, em 2015, a autoridade holandesa sobre concorrência multou por conluio algumas redes de supermercados que excluíam produtos que não atendessem a condições mínimas de bem estar de galinhas. Para essa autoridade, já que restringir a venda de produtos que causam sofrimento em animais não tinha base legal, a medida desses supermercados foi acusada como sendo uma forma de cartel.

Para além de dar seu dinheiro apenas para empresas que têm, de fato, o mínimo de preocupação em reduzir sofrimento animal, eu sugiro que você dê uma olhada na audiência pública da CVM. Você pode participar mandando para eles um e-mail com a sua opinião para o endereço que eu coloco aí na tela — audpublicaSDM0920@cvm.gov.br — dizendo, por exemplo, que acha importante que proteger animais contra a crueldade e sofrimento seja mencionado explicitamente entre os fatores de risco para a responsabilidade socioambiental das empresas. Se você quiser saber o que escrever nesse e-mail, eu vou deixar um modelo aí nos comentários deste vídeo.

Essa simples medida, embora pareça meramente burocrática, gera um incentivo realmente impactante para que as empresas de todo o Brasil sejam socialmente responsáveis conforme busquem levar o sofrimento dos animais a sério. E você não precisa deixar de comer carne para reconhecer isso.

Modelo de e-mail para enviar para o endereço: audpublicaSDM0920@cvm.gov.br

Assunto:
Manifestação sobre Audiência Pública 09/2020 da CVM

Corpo do e-mail:
Dispositivo em questão: nova redação do Anexo 24, item 4.2, ‘l’, da IN 480 — fatores de risco expostos no Formulário de Referência.

Venho por meio desta sugerir uma pequena alteração na minuta submetida a esta audiência pública. Onde se lê “a questões ambientais”, sugiro que seja reescrito como “a questões ambientais, inclusive a prevenção de maus-tratos e sofrimento contra animais”. A referência a maus-tratos contra animais encontra fundamento jurídico no art. 225, VII, da Constituição, c/c art. 32 da Lei n° 9.605, devendo ser observada por todo e qualquer ente jurídico deste país.

Acredito que essa alteração resguardaria empresas que adotam ações relacionadas ao tema que não são paradigmaticamente associadas à preservação ambiental (como decisões sobre deixar de operar com frangos criados em gaiola, ou mitigar o sofrimento de animais de criação durante o transporte) e proporcionaria sua divulgação; em contrapartida, se ações visando ao bem-estar animal não forem classificadas como parte da responsabilidade socioambiental de companhias, temo que estas terão menos incentivos para agir nessa área.

Parabenizo a CVM pela audiência pública nº 9/2020, para revisão de dispositivos da IN CVM 480, em especial quanto à divulgação de informações que reflitam aspectos sociais, ambientais e de governança corporativa por emissores de valores mobiliários. Infelizmente, as alterações propostas na minuta não fazem qualquer referência a bem-estar animal, e acredito que isso precise ser corrigido. Att., (seu nome)

Roteiro: Ramiro Peres
Edição: Yan Thierry
Apresentação: Alysson Augusto

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Alysson Augusto

Mestrando em Filosofia (PUCRS). Produzo vídeos de divulgação filosófica no Youtube. Inscreva-se: http://youtube.com/alyssonaugusto